sábado, 27 de março de 2010

É PÁSCOA...

Uma rua, uma casa simples, uma mãe, um menino e o vento.

Ele não conseguia entender o motivo de tanta agitação. Era época de festas mas nas ruas o constante vai e vem das pessoas indicava que algo diferente estava acontecendo.

De súbito um homem esbaforido e agitado aparece na esquina gritando e apontando nervosamente para o outro lado da rua.

Assustado com os gritos do homem, o menino corre para se esconder entre as pernas de sua mãe que, em pé, parece não acreditar no que seus olhos vêem. Rapidamente ela encobre com um lenço os olhos do seu assustado filho a fim de poupá-lo da cena que começa a se desenrolar na esquina da rua de sua casa.

Um grupo de pessoas visivelmente alteradas dirige palavras grosseiras para dois homens maltrapilhos que tem seus braços amarrados a grossas traves de madeira que carregam sobre os ombros. A dor das costas esfoladas por açoites não os impedem de, enquanto caminham, proferirem impropérios e maldições.

Tão rapidamente como surgiram na esquina, este alvoroço de gente segue seu caminho deixando para trás um menino ainda escondido atrás de sua bondosa mãe que esta na porta de sua casa simples em uma rua empoeirada. O vento se encarrega de levar para longe a poeira e o som das vozes dissonantes.

No silencio que se seguiu a mãe sente o filho a puxar-lhe o braço. Ela então se abaixa e ouve a seguinte pergunta:
- Mãe, quem era estes homens com a madeira nas costas?

A mãe responde:
- Estes são homens maus, que fizeram coisas muito ruins e por isso merecem morrer.

O menino então arregala bem os olhos, como que tomado de surpresa com a objetividade da resposta da mãe e exclama:
- Noooossa!!

A intimidade da conversa entre mãe e filho é então interrompida quando uma mulher, com a cabeça coberta por um véu e chorando profundamente, como a lamentar a própria sorte, passa correndo pela rua e diz:
- Ai vem Ele! Ai vem Ele!

Uma multidão de gente, homens e mulheres, de todas as idades, visivelmente alterados e enraivecidos, cercam e acompanham um homem que vai no meio deles cercado por uma escolta de soldados que pouco faz para o proteger da turba que, tomada por frenético êxtase e cruel frenesi, dirige palavras de ordem, fazem gracejos, acusações e vociferam toda a sorte de imprecações e maldições para o prisioneiro.

A mãe, mais uma vez, cobre o rosto do filho para que este não veja a abjeta cena de crueldade e desamor, mas o menino consegue se desvencilhar dos cuidados da mãe e se aproxima o máximo que pode da multidão e se estica todo para ver o homem que empurrado, chutado e cuspido pela massa de gente ensandecida, a passos trôpegos caminha em profundo silêncio. Nada diz. Nada responde. Mantém em sua aparência um ar da mais profunda serenidade mesmo diante da truculência com que é tratado pelos que o cercam.

Ele tem o rosto marcado e inchado de tantos socos e tapas. Na sua cabeça profundos cortes fazem fluir sangue que lava o rosto já desfigurado. As costas e os ombros estão com vários cortes profundos dos quais pendem pedaços de pele de músculo atestando ter o réu sido severamente açoitado.

Diferentemente dos dois primeiros, este carrega uma cruz inteira. Ela parece ser pesada demais. Os pés do acusado param. As pernas tremem. A turba raivosamente grita ainda mais. As profundas feridas nos ombros causam lancinante dor. Sente o peso da cruz. Cai.

Seu rosto ferido, suado e ensangüentado se mistura a poeira levantada pelos muitos pés que o seguem. Ninguém o consola, não há mão alguma que o ampare. Enquanto tenta se levantar sente-lhe arder as costas. É novamente açoitado. Todo o seu corpo treme de dor. Faltam-lhe as forças. Ele respira profundamente. Trêmulo, consegue ficar em pé. A cruz é jogada sobre os ombros e ele então retoma o caminho, lentamente dobra a esquina e segue... para a morte.

Em pé, assustado, olhos bem abertos, o menino passa a mão no rosto para tirar a poeira, esfrega as mãos na roupa e então vira-se para sua mãe e pergunta:
- E este mamãe, o que ele fez para merecer morrer?

A mãe, com lágrimas nos olhos, responde:
- Este, meu filho. Este nos amou primeiro.

BOA PÁSCOA!

sábado, 20 de março de 2010

PELA HORA DO PLANETA

A Hora do Planeta é um movimento mundial promovido por uma ONG afim de chamar a atenção do mundo para questões relacionadas as mudanças climáticas e, em um nível mais elevado, pensar nas questões de conservação de todo o planeta.

Pois bem, este movimento prevê que no dia 27 de março deste ano algumas importantes cidades do mundo apaguem as luzes de monumentos e edifícios públicos e que o cidadão comum também se sinta sensibilizado e motivado a colaborar com tal iniciativa fazendo a sua parte que consiste em ficar por 1 hora no escurinho meditando na importância de sua contribuição individual para a coletividade global, etc, etc, etc...

Cá entre nós, cariocas, assim bem popular mesmo: E o quico com isso, hein?

Já dou minha contribuição de forma compulsória, pra bem da verdade, para o raio desta Hora do Planeta por obra e graça, quero dizer, desgraça dos péssimos serviços da Light - empresa concessionária de serviços de energia elétrica aqui da cidade do Rio de Janeiro - que, não mais de vez em quando mas, de vez em sempre me deixa no mais completo breu.

Quando a luz se vai é hora de um verdadeiro ritual: corre para puxar tudo quanto for fio de tudo quanto for tomada, pois quando a energia retornar – com muita sorte em menos de 24 horas – a possibilidade de queimadeira geral nos eletrodomésticos é altíssima. Realizada a prova do “puxar-da-tomada” é hora do “cadê-a-vela”. Tropeçando aqui e metendo o dedão do pé na quina de um móvel ali, você consegue achar o, já item da cesta-básica carioca, saquinho de velas e dependendo da intensidade de seu medo do escuro seus vizinhos, que senão estivessem em igual situação, poderiam pensar ter se transformado sua casa em algum centro religioso tamanha a quantidade velas acessas.

Ainda não é chegado o dia de A Hora do Planeta e o que eu já economizei de energia elétrica pelo desserviço da prestadora de serviço daria para iluminar a praça perto de casa que vive as escuras, cheia de marginais ávidos para que eu e tantos outros, na hora de A Hora do Planeta apaguemos as luzes e em meio a reflexões energéticas e conservacionistas, eles nos permitam também refletir sobre quão efêmero é o conceito da posse de bens, quão voláteis são as promessas na área de segurança pública e quão insegura é a vida.

Na criação do mundo Deus disse: “Haja luz”.
Pouco antes do fim do mundo a Light diz: “Apague a luz.” E temos mais um apagão no Rio de Janeiro!

Mas apagão, ou melhor, apagões – voluntários ou compulsórios -, não são apenas manifestações de preocupação ecológica ou atestado claro e evidente de incompetência nos mais variados níveis do setor elétrico, na matriz energética brasileira; apagões são também exercícios de pura democracia onde ricos e pobres sofrem e são tratados igualmente, ou quase isso. Veja comigo:

Durante o apagão eu, pobre, rapidamente terminei meu banho sob o chuveiro enquanto o Alcaide, rico, pediu para sua empregada trazer as velas, os sais de banho e ficou de molho, relaxando do dia tenso no escritório; Eu, corri para o telefone e gastei horas ouvindo uma musiquinha irritante esperando ser atendido pela empresa de energia elétrica enquanto o Alcaide ainda repousava em seu banho de beleza; Eu, sob a luz de uma única vela, debaixo de um calor insuportável, sem ventilador ou ar-condicionado e com nuvens de mosquitos (os da dengue!!) ao meu redor ainda aguardo para ser atendido pela empresa enquanto o Alcaide já terminou o seu banho e esta confortavelmente instalado em seus aposentos, sob refrigeração, vendo o telejornal que anuncia viver a cidade do Rio de Janeiro mais um apagão.

Ah, sim! Ele, o Alcaide, mora em um prédio nobre, de uma rua nobre, em um bairro nobre, com vizinhos nobres - sem nenhum pobre - e mandou instalar um potente gerador para garantir nobre energia aos nobres, pobres!

Gaste mais energia pensando nas pessoas ao invés de gastar pessoas para economizar energia.

quinta-feira, 11 de março de 2010

SAUDADE...

De que é feita a saudade?
Senão de uma dor assim pungente
Um lembrar você bem de repente
E sentir-me assim, todo contente
Apesar da lágrima que caí.

Do que é feita a saudade?
Senão de uma suave alegria
De relembrar assim, com nostalgia
Quem já não é, mas foi um dia
Enquanto chora o meu pensar.

Saudade é feita de sentir falta:
De um rosto que não se vê
De uma voz que não se ouve
De tua mão que não mais me toca
Do teu abraço que não tenho mais

Saudade é...
... você.

Maria Barbosa Prado (1944 - 2009)

segunda-feira, 8 de março de 2010

DECLARAÇÃO DO CAIPIRA

Cuma havera di eu expricá
Pra vóis micê intendê?
Vamu vê se aconseguimu
Nestes versinhu dizê
O que nóis está sentindo
E qui faiz o coração batê.

É qui quando nóis te viu
Sentimu na espinha um arrepir
Tamanha a vossa formosura
Virge Santa! Que belezura.

Mais ocê num arreparô
Nem sequer com seus zóio oiô
A minha simples figura
Foi por eu não ter instrução
E só saber contar até os deiz dedo das mão.

Agora qui ocê si foi
Lá pras banda dos estrangeiro
Inté acendi umas vela
Pra minha virge santinha
Pedindo pra ocê vortá
A mó di meu coração acarma.

Mas enquanto a santa demora
A minha prece escutá
Escrevi estes verso
Qui agora vô decrama:

Quando lá de arriba do céu escorre água,
Aqui cá embaixo nesta terra seca i rachada,
As água dos meus zóio tumbém a di escorrê
Pra módi moía a prantinha
Que um dia ocê pranto
No leito do rio da minh’arma
Que di sardade de ocê, secô.

sexta-feira, 5 de março de 2010

NOTA DE FALECIMENTO

Com tristeza e pesar que comunico o falecimento da Amizade.

Ela morreu em decorrência de falência múltipla e infecção generalizada agrava nestes últimos dias pelo descaso. Seu desejo foi não ser velada para evitar o constrangimento do não comparecimento de ninguém. Seu corpo repousa inerte no cemitério da saudade.

Com o pouco de energia e força que lhe restava, pouco antes de expirar, escreveu esta pequena nota e pediu que fosse divulgada.

“Meus queridos, eu que já fui robusta e forte, cá estou exaurida de minhas forças pelo vírus do descaso e da omissão que nestes tempos modernos tem se espalhado velozmente. Custa-me muitíssimo escreves estas poucas linhas, mas como meu último desejo peço que atentem para o que tenho a dizer:

Não deixem que o excesso de zelo com os afazeres diários tirem de vocês a vontade de falar com seus amigos. Reservem tempo para dar sinal de vida seja com uma ligação, uma carta, um email ou, melhor ainda, pessoalmente.

Não cobrem que os teus amigos te procurem; procure você por eles.

Jamais tratem seus amigos com indiferença, arrogância, prepotência ou preconceito de qualquer espécie.

Saibam valorizar o que teus amigos têm de melhor

Reconheçam nas possíveis diferenças entre você oportunidades de mútuo aprendizado.

Exercitem o perdão genuíno.

E lembrem-se: sempre façam contato. Amigos gostam de abraço.”

Então ela, a Amizade, assim que terminou de escrever me entregou caneta e papel, seus lábios ainda esboçaram um lindo sorriso, respirou profundamente, cerrou os olhos e adormeceu.

terça-feira, 2 de março de 2010

DEFINITIVAMENTE, EU

Eu sou, no singular.
Substantivo próprio.
Transgressão a regra gramatical na
Efêmera manifestação de rebeldia.
Figura de linguagem distorcida,
Escrita e agrupada
Nestes singelos versos.
Sujeito simples, sem muita forma ou rima
Objeto direto, às vezes indireto
Núcleo desta oração inacabada em mim.